O Ocidente não pode fugir ao alargamento do conflito israelo-palestiniano

22 de outubro 2023 - 12:33

Nesta entrevista, Gilbert Achcar fala das diferentes visões do conflito nos vários pontos do globo e diz temer que o ciclo de violência alastre à Europa se o direito internacional continuar a não ser respeitado por Israel na Palestina.

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Gilbert Achcar
Gilbert Achcar. Imagem Democracy Now

A resposta israelita à ofensiva conduzida pelo Hamas gerou a revolta de uma grande parte do mundo muçulmano, de Bagdade a Teerão, passando pelas capitais europeias. Como não temer uma conflagração nas relações entre o Oriente e o Ocidente, quando a solidariedade dos muçulmanos para com o povo palestiniano se faz ouvir com força, entre manifestações pacíficas de apoio e atos de terrorismo? Elementos de resposta são dados aqui por Gilbert Achcar, professor da School of Oriental and African Studies (SOAS) da Universidade de Londres, especialista no mundo árabe contemporâneo e autor de várias obras sobre o tema, entre as quais The Clash of Barbarisms. The Making of the New World Disorder (2002).


Como devemos entender as reações de solidariedade do mundo muçulmano após o ataque do Hamas?

Estas reações põem em evidência a clivagem Norte-Sul que existe na perceção do conflito no Médio Oriente. É certo que o ataque do Hamas foi particularmente violento, mas houve reacções semelhantes ao 11 de Setembro. Após esse choque absolutamente monumental, o mundo ocidental identificou-se com os Estados Unidos, como o faz hoje com Israel. No entanto, nos países do Sul Global, muitas pessoas regozijaram-se com o facto de, por uma vez, os Estados Unidos terem "levado uma tareia".

É assim que os países muçulmanos se sentem atualmente em relação a Israel?

No seio do mundo muçulmano, existe um grande fosso entre os governos árabes que estabelecem relações com o Estado de Israel e a opinião pública que defende a causa dos palestinianos. Esta última considera, com razão a nível histórico, que na Palestina as vítimas não são os judeus, mas sim os palestinianos. No mundo da cultura europeia, as pessoas tendem a ver os judeus como vítimas devido ao incomparável horror histórico que foi a Shoah. E tendem a projetar essa mesma grelha de leitura na atualidade.

E não é assim?

As referências aos pogroms e ao Holocausto são completamente inadequadas. O que o Hamas fez é bárbaro. Mas o que Israel faz constantemente, bombardeando hospitais, edifícios, concentrações de civis, também é uma barbárie. Assim, fora do mundo ocidental, não vemos os israelitas - não estou a falar dos judeus em geral, mas dos israelitas - como vítimas, mas como colonos, protagonistas do colonialismo. Temos, portanto, de nos afastar um pouco dessa visão ocidental e tentar ver as coisas como os outros as veem - esses outros que são a maioria do planeta.

Estaremos então perante um choque de visões entre o mundo ocidental e o Sul Global?

Como já escrevi no dia seguinte ao 11 de Setembro, vivemos num mundo onde cada civilização produz as suas próprias formas de barbárie, que dependem dos seus meios. Os Estados Unidos cometeram barbaridades indescritíveis no Vietname, no Iraque, etc. E os atentados de 11 de Setembro foram eminentemente bárbaros. Mas, neste confronto de barbaridades, não podemos ser neutros.

Ou seja?

Não podemos embrulhar-nos numa atitude moral que ponha todos de costas voltadas. Isso seria injusto, porque a responsabilidade principal recai sobre os mais fortes, sobre os opressores. Evidentemente que condeno qualquer ato de barbárie. Mas, se fizermos as contas, houve ao longo dos anos muito mais vítimas palestinianas do que israelitas. E é isso que as pessoas no mundo muçulmano registam. E é por isso que, apesar da atrocidade do que aconteceu, continuam a ver os palestinianos como as vítimas principais.

O apoio dado a Israel desde este ataque não corre o risco de inflamar ainda mais os ânimos?

Sim, claro, e é por isso que o ataque do Hamas é uma loucura. O 11 de Setembro foi um duro golpe para a arrogância americana, mas serviu enormemente a administração de George W. Bush, que até então estava no fundo do poço nas sondagens. De repente, viu-se com 80% de popularidade e lançou-se em guerras: Afeganistão e Iraque. Há muito tempo que os membros da sua administração andavam a congeminar a ideia de ocupar o Iraque e Bin Laden ofereceu-lhes a oportunidade perfeita. Estamos a assistir à mesma coisa hoje: Netanyahu, que foi contra a retirada de Gaza em 2005 e que se demitiu do governo israelita por essa razão, vai agora liderar uma nova ocupação de Gaza. Este é claramente o seu plano, mas desta vez com uma deslocação maciça e forçada da população, que ele pretende empurrar através da fronteira para o Sinai egípcio.

Neste espírito de solidariedade intra-muçulmana, como podemos compreender que as portas do Egito permaneçam fechadas?

Os egípcios sabem muito bem que os palestinianos que deixarem Gaza provavelmente não serão autorizados a regressar. Todos têm em mente o padrão do que aconteceu em 1948, quando os palestinianos fugiram dos combates. Abandonaram as suas casas, levando consigo as chaves, porque pensavam que iriam regressar. No entanto, nunca lhes foi permitido regressar e foi assim que se tornaram refugiados. É exatamente isso que poderá acontecer diante dos nossos olhos.

Como podemos compreender que esta solidariedade se exprima não só no mundo muçulmano, mas também entre os muçulmanos da Europa ou da América?

Porque eles vêm do mundo colonizado e veem as coisas de forma muito diferente. Como é óbvio, não devemos generalizar quando falamos do Ocidente, dos muçulmanos e dos judeus. Há, por exemplo, na Europa e na América, muitas pessoas de ascendência judaica que são muito críticas em relação ao Estado de Israel. Estas pessoas veem claramente o paradoxo: este Estado foi criado por meios militares em 1948 com a ambição de oferecer um refúgio seguro aos judeus. Mas haverá algum lugar no mundo onde os judeus estejam hoje menos seguros do que em Israel? Trata-se de um terrível fracasso histórico.

Como é que chegámos até aqui?

Desde 1967, a Cisjordânia e Gaza estão sob ocupação. E Israel continua a violar o direito internacional e a construir colonatos na Cisjordânia. É uma dinâmica infernal. Mas não nos enganemos: o que ali vai acontecer será terrível e terá repercussões na própria população israelita, mas também na Europa e nos Estados Unidos, que serão considerados cúmplices. A comunidade internacional é culpada de ter deixado a situação deteriorar-se, a começar pelos Estados Unidos, que têm a maior influência sobre Israel, seguidos pela Europa.

Será, portanto, de esperar um recrudescimento dos atentados terroristas?

Receio que seja isso que nos espera. O ciclo de violência no Médio Oriente continuou a alastrar à Europa, tendo mesmo chegado aos Estados Unidos de forma espetacular em 2001, naquela que continua a ser a maior operação terrorista da história.

Como é que podemos evitar que este conflito se alastre ao nosso país?

Talvez eu seja ingénuo ou idealista, mas acredito no direito internacional. Acredito que a ONU é uma conquista preciosa para a humanidade e o único quadro que pode moldar um mundo pacífico. Mas a Carta das Nações Unidas continua a ser violada. Só a sua aplicação integral pode alcançar a razão pela qual foi concebida: a paz universal.


Entrevista realizada a 17 de outubro de 2023 por Anne-Sylvie Sprenger, do Protestinfo e publicada no site de Gilbert Achcar. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net